O novo cenário formado pela catarse do direito constitucional e do direito internacional dos direitos humanos exige um alargamento da perspectiva do direito constitucional tradicional. Embora o Estado, com base nas constituições nacionais, tenha a responsabilidade primordial pela realização dos direitos, a crescente importância do diálogo entre os diferentes planos de proteção para a plena realização dos direitos é um fenómeno irreversível e particularmente notável da nossa contemporaneidade constitucional.
Este movimento contemporâneo aproxima os conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais; e assim, o direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos aproximam-se cada vez mais. Com isso, ambos se resignificam dentro de um discurso transnacional que se forma em torno da força expansiva do princípio de dignidade humana.
Já não existe mais –se é que um dia existiu– um único lugar constitucional, senão uma rede complexa, plural e mestiça de reconhecimento de experiências constitucionais e cooperação para alcançar objetivos constitucionais comuns, entre eles os direitos humanos como um dos principais. Assim, esta nova espacialidade pública é estruturada em torno do princípio pró-pessoa. Colocou o ser humano –concreto e situado– no centro da proteção constitucional, afastando-se do sujeito abstrato da modernidade; com foco nas vítimas encarnadas que experimentam a fome, o medo, o ódio, o preconceito, a violência e a subjugação que são muitas vezes o anverso do discurso constitucional dos direitos.
Na relação entre o constitucionalismo interno e o direito internacional, ressignificam-se as estruturas e o pluralismo surge como a moldura deste novo espaço, como propõe Walker. A nível interno, não se reconhece unicamente a autoridade estatal na definição do significado da constituição, como as experiências recentes do constitucionalismo na Bolívia e no Equador propõem. No plano internacional, transcendendo as antigas discussões entre monismo e dualismo (que parecem ter pouco sentido neste cenário) pretendesse conceber diferentes ordens sem hierarquia, mas integradas numa coexistência que se reforce mutuamente, formando uma paisagem transconstitucional heterárquica, múltipla e, portanto, robustecida. Forma-se assim uma rede, com diferentes níveis, que se nutrem e se limitam mutuamente, daí a expressão multinível de Pernice.
Evidentemente, a intenção não é simplesmente transplantar as ideias europeias de pluralismo e multinível para o contexto latino-americano, mas, aproveitando o seu potencial de expansão, adaptá-las para maximizar a proteção dos direitos humanos no contexto das dificuldades estruturais que a região enfrenta. Neste sentido de expansão, outros movimentos apontam na mesma direção, como o transconstitucionalismo de Marcelo Neves ou a emergência do um ius commune latino-americano apontado por Bogdandy, Morales e Piovesan.
Assim, a nossa concepção do constitucionalismo multinível baseia-se na perspectiva de que os direitos humanos são entendidos como processos abertos, ativos e concretos que visam ampliar os espaços constitucionais contemporâneos e redimem a promessa de proteção ainda não realizada, sobretudo na periferia do constitucionalismo mundial. Neste novo domínio da espacialidade, a importância dos diálogos entre os diferentes planos de proteção dos direitos humanos é particularmente notável e requer uma relação entre os constitucionalismos locais e o direito internacional dos direitos humanos.
Em nosso contexto regional tem, nestes diálogos, um papel especial o sistema interamericano de direitos humanos pelo seu potencial transformador, em atenção às peculiaridades e especificidades das lutas por direitos e justiça na América Latina.
Na experiência brasileira, os casos submetidos ao sistema interamericano têm um impacto significativo na reforma das leis e políticas públicas de direitos humanos, permitindo progresso interno significativo. Em matéria de género isto é muito eloquente já que os casos denunciam um padrão específico de violência que chega às mulheres: violência baseada no género capaz de causar morte, lesões ou sofrimento físico, sexual ou psicológico às mulheres, seja no domínio público ou privado. Estes casos de violência denunciam parâmetros institucionais de discriminação e exigem a luta contra a impunidade, sublinhando o dever do Estado de investigar, processar e punir os responsáveis, com apoio central na Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e erradicar a violência contra as mulheres.
Como exemplo, merece destaque o caso de Maria da Penha Maia Fernandes : as tentativas violentas de seu parceiro, inclusive de tentativa de assassinato, levaram-na à paraplegia irreversível. Depois de quinze anos o acusado ainda estava livre, utilizando sucessivos recursos processuais contra a decisão de condenação dos jurados populares. Em 2001, numa decisão sem precedentes, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou o caso admissível e condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando ao Estado, entre outras medidas, "interromper a tolerância estatal e o tratamento discriminatório em relação à violência doméstica contra as mulheres no Brasil".
Foi a primeira vez que um caso de violência doméstica levou à condenação de um país sob o sistema interamericano de proteção de direitos humanos, com impactos não só no Brasil, mas em toda a região. Em cumprimento da decisão da CIDH, o Estado brasileiro adotou a Lei No. 11340/2006, que estabelece mecanismos para deter e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres e determina o pagamento de uma indenização à vítima. No entanto, o que fica claro no Relatório 2018 da CIDH é que este caso continua a ser considerado pela Corte como parcialmente cumprido.
A propósito, nem o relatório da Comissão, nem a lei por si só tem o poder de mudar a realidade endémica da violência doméstica no Brasil e na nossa região, mas há –neste diálogo com o sistema interamericano– progressos internos no que respeita ao recrudescimento face às violências de género que, muitas vezes, em contextos nacionais marcados por uma cultura machista e violenta contra mulheres não avançaria. Estes parâmetros de proteção –decorrentes da espacialidade multinível– permitiram compensar os défices nacionais, fomentar os progressos nos quadros legislativos e nas políticas públicas de direitos humanos, bem como prevenir retrocessos e retrocessos no regime de proteção dos direitos, bem como empoderar os actores sociais na luta pelos direitos e pela justiça.
Deste exemplo, fica demonstrado que o objectivo desta catarse é ampliar e melhorar a proteção dos direitos humanos, com base numa lógica plural, complexa, impura e mista, sempre no interesse das pessoas protegidas e dos seus direitos. O fortalecimento de um discurso coerente, mas plural se soma à proteção tanto do sistema internacional quanto dos sistemas nacionais, já que se reforçam mutuamente em apoio do princípio pró-pessoa.
É certo que novos diálogos dentro dos velhos canais institucionais de poder frustram os efeitos transformadores que se pretendiam originalmente. Assim, o constitucionalismo multinível, ao mesmo tempo que contribui para maximizar a proteção dos direitos, permite também a revisão do próprio conceito da constituição, do direito constitucional e das suas instituições fundamentais. À luz deste contexto multinível, lança-se o desafio de repensar, reformular e reinventar o papel dos constitucionalismos locais e sistemas internacionais para, através de uma ação articulada, integrada e coordenada, contribuir para o fortalecimento dos direitos humanos.
Nesta base, floresceu o direito constitucional multinível, caracterizado por intercâmbios constitucionais que estão essencialmente impregnados de diálogos diferentes experiências com o fim de gerar um impacto transformador e ampliativo da proteção dos direitos no cenário regional.
Falar de diálogo já não é uma novidade nem uma faculdade, é uma condição que o estado atual do direito constitucional e do direito internacional dos direitos humanos nos impôs com as cláusulas abertas, o controle de convencionalidade, a expansão do bloco de constitucionalidade, entre outros. Estes diálogos abrem espaços num ambiente multinível, caracterizado simultaneamente pela constitucionalização, internacionalização e humanização, em torno de uma constituição aberta e porosa, radicalmente centrada nos direitos humanos e na prevenção do sofrimento humano.
Constitucionalismo Multinivel en el contexto latinoamericano
El nuevo escenario formado por la catarsis del derecho constitucional y del derecho internacional de los derechos humanos exige una ampliación de la perspectiva del derecho constitucional tradicional. Aunque el Estado, con amparo en las constituciones nacionales, tiene la responsabilidad primordial de la realización de los derechos, la creciente importancia del diálogo entre los diferentes planos de protección para la plena realización de los derechos es un fenómeno irreversible y particularmente notable de nuestra contemporaneidad constitucional.
Este movimiento contemporáneo aproxima los conceptos de derechos humanos y derechos fundamentales; y así, el derecho constitucional y el derecho internacional de los derechos humanos se acercan cada vez más. Con esto, ambos se resignifican dentro de un discurso transnacional que se forma alrededor de la fuerza expansiva del principio de dignidad humana.
Ya no existe –si es que un día existió– un único lugar constitucional, sino una red compleja, plural y mestiza de reconocimiento de experiencias constitucionales y cooperación para lograr objetivos constitucionales comunes, entre ellos, los derechos humanos como uno de los principales. Así, esta nueva espacialidad pública se estructura alrededor del principio pro persona, que coloca al ser humano - concreto y situado - en el centro de la protección constitucional y los aleja del sujeto abstracto de la modernidad. Lo anterior, con especial atención en las víctimas que experimentan el hambre, el miedo, el odio, el prejuicio, la violencia y la subyugación, que son muy a menudo el reverso del discurso constitucional de los derechos.
En la relación entre constitucionalismo interno y derecho internacional, se resignifican las estructuras, y el pluralismo surge como la moldura de este nuevo espacio, como propone Walker. A nivel interno, no se reconoce únicamente la autoridad estatal en la definición del significado de la Constitución, como plantean las experiencias recientes del constitucionalismo en Bolivia y Ecuador. En el plano internacional, al trascender las antiguas discusiones entre monismo y dualismo –que parecen tener poco sentido en este escenario–, se pretende concebir diferentes órdenes sin jerarquía, más integrados en una coexistencia que se refuerza mutuamente y que forma un paisaje transconstitucional heterárquico, múltiple y, por tanto, robusto. Se forma así una red, con diferentes niveles, que se nutren y se limitan mutuamente, de ahí la expresión multinivel de Pernice.
Evidentemente, la intención no es simplemente trasplantar las ideas europeas de pluralismo y multinivel al contexto latinoamericano, pero sí, aprovechando su potencial expansivo, adaptarlas para maximizar la protección de los derechos humanos dentro de las dificultades estructurales que enfrenta la región. En ese sentido de expansión, otros movimientos apuntan en la misma dirección, como el transconstitucionalismo de Marcelo Neves o la emergencia de un ius commune latinoamericano señalado por Bogdandy, Morales y Piovesan.
En esa medida, nuestra concepción del constitucionalismo multinivel se basa en la perspectiva de que los derechos humanos se entienden como procesos abiertos, activos y concretos que buscan ampliar los espacios constitucionales contemporáneos y redimir la promesa de protección aún no realizada, sobre todo en la periferia del constitucionalismo mundial. En esta nueva esfera de la espacialidad, la importancia de los diálogos entre los diferentes planos de protección de los derechos humanos es particularmente notable y requiere de una relación entre los constitucionalismos locales y el derecho internacional de los derechos humanos.
En nuestro contexto regional tiene, en estos diálogos, un papel especial el Sistema Interamericano de Derechos Humanos por su potencial transformador, en atención a las peculiaridades y especificidades de las luchas por los derechos y la justicia en Latinoamérica.
La experiencia brasileña muestra que los casos sometidos al sistema interamericano han tenido un impacto significativo en la reforma de las leyes y de las políticas públicas de derechos humanos, que ha permitido un progreso interno significativo. En materia de género, lo anterior es elocuente ya que se denuncia un patrón específico de violencia contra las mujeres: violencia basada en el género capaz de causar muerte, lesiones o sufrimiento físico, sexual o psicológico a las mujeres, ya sea en el ámbito público o en el privado. Esos casos de violencia revelan parámetros institucionales de discriminación que requieren de la lucha contra la impunidad, subrayando el deber del Estado de investigar, enjuiciar y castigar a los responsables, con apoyo central en la Convención Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra la Mujer.
Como ejemplo, merece ser destacado el caso de Maria da Penha Maia Fernandes: los ataques violentos de su pareja, incluso de tentativa de homicidio, la llevaron a la paraplejia irreversible. Después de quince años, el acusado permanecía libre, utilizando sucesivos recursos procesales contra la decisión condenatoria de los jurados populares. En 2001, en una decisión sin precedentes, la Comisión Interamericana de Derechos Humanos declaró ese caso admisible y condenó al Estado brasileño por negligencia y omisión en relación con la violencia doméstica, recomendando al Estado, entre otras medidas, "interrumpir la tolerancia estatal y el trato discriminatorio con respecto a la violencia doméstica contra las mujeres en Brasil".
Fue la primera vez que un país fue condenado por un caso de violencia doméstica bajo el sistema interamericano de protección de derechos humanos, con impactos no solo en Brasil, sino también en toda la región. En cumplimiento de la decisión de la CIDH, el Estado brasileño adoptó la Ley No. 11340/2006, que establece mecanismos para frenar y prevenir la violencia doméstica y familiar contra las mujeres y determina el pago de una indemnización a la víctima. Sin embargo, lo que queda claro a partir del Informe 2018 de la CIDH, es que el cumplimiento de esta condena ha sido sólo parcial.
Es cierto que ni el informe de la Comisión, ni la ley por sí sola tienen el poder de cambiar la realidad endémica de violencia doméstica en Brasil y en nuestra región, pero hay –en este diálogo con el sistema interamericano– progresos internos que, frente al recrudecimiento de las violencias de género muchas veces marcado por una cultura machista y violenta contra mujeres en los contextos nacionales, no ocurrirían. Esos parámetros de protección –derivados de la espacialidad multinivel– han permitido compensar los déficits nacionales, fomentar los progresos en los marcos legislativos y las políticas públicas de derechos humanos, prevenir retrocesos en el régimen de protección de los derechos, así como empoderar a los actores sociales en la lucha por los derechos y por la justicia.
A partir del ejemplo, queda demostrado que el objetivo de esta catarsis es ampliar y mejorar la protección de los derechos humanos, sobre la base de una lógica plural, compleja, impura y mixta, siempre en interés de las personas protegidas y sus derechos. El fortalecimiento de un discurso coherente, pero plural, se suma a la protección tanto del sistema internacional, como de los sistemas nacionales, ya que se refuerzan mutuamente en apoyo del principio pro persona.
Es cierto que nuevos diálogos dentro de los viejos canales institucionales de poder frustran los efectos transformadores que se pretendían originalmente. Pero, el constitucionalismo multinivel al tiempo que contribuye a maximizar la protección de los derechos, también permite la revisión del propio concepto de la Constitución, del derecho constitucional y de sus instituciones fundamentales. A la luz de este contexto multinivel, se lanza el desafío de repensar, reformular y reinventar el papel de los constitucionalismos locales y los sistemas internacionales para que, mediante una acción articulada, integrada y coordinada, contribuya al fortalecimiento de los derechos humanos.
Sobre esta base, florece el derecho constitucional multinivel, caracterizado por intercambios constitucionales que están esencialmente impregnados de diálogos y de diferentes experiencias, con el fin de generar un impacto transformador y expansivo de la protección de los derechos en el escenario regional.
Hablar de diálogo ya no es una novedad ni una facultad, es una condición que el estado actual del derecho constitucional y del derecho internacional de los derechos humanos nos ha impuesto a través de las cláusulas abiertas, del control de convencionalidad o de la expansión del bloque de constitucionalidad, entre otros. Estos diálogos abren espacios en un entorno multinivel, caracterizado simultáneamente por la constitucionalización, la internacionalización y la humanización, alrededor de una Constitución abierta y porosa, radicalmente centrada en los derechos humanos y en la prevención del sufrimiento humano.
Cita recomendada: Melina Girardi Fachin, “Constitucionalismo Multinível no contexto latino-americano” IberICONnect, 23 de agosto de 2021. Disponible en: https://www.ibericonnect.blog/2021/08/constitucionalismo-multinivel-no-contexto-latino-americano/