Dados colhidos pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar apontam que, em 2021, cerca de 19 milhões de brasileiros passam fome. Embora a situação estivesse se agravando desde 2014, é preciso salientar que de 2018 a 2020 o número de pessoas com insegurança alimentar grave dobrou. Somada a essa dificuldade, o governo vem progressivamente abandonando o Programa Cisternas , que visa viabilizar o acesso à água das chuvas para consumo doméstico de famílias do semiárido brasileiro. O investimento público na construção das cisternas reduziu 94% nos últimos seis anos .
Diante da inércia do Governo Brasileiro, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs ação perante o Supremo Tribunal Federal (ADPF 885), cobrando medidas eficazes para conter o comprometimento dos direitos humanos à alimentação e à água potável. A judicialização dessa situação nos remete ao famoso caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro de 2020: Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Hohhat (Nossa Terra) vs. Argentina , em que a Corte Interamericana reconheceu a justiciabilidade do direito à água potável, à alimentação e ao meio ambiente saudável. Que lições essa sentença pode aportar ao julgamento da ADPF 885?
Em primeiro lugar, é essencial relembrar a vinculação do Estado Brasileiro à jurisprudência interamericana, por força de sua adesão à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e reconhecimento da jurisdição contenciosa da Corte . Mesmo as decisões que tocam outros Estados, como o Lhaka Honhat vs. Argentina, têm força de res interpretata, a ser considerada nos diálogos judiciais.
Neste panorama, é precisamente um diálogo judicial a partir do caso Lhaka Hohnat que defendo para a análise da ADPF 885 pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de enfrentar o problema da fome e do acesso à água para milhões de brasileiros.
O caso Lhaka Honhat foi julgado pela Corte Interamericana em fevereiro de 2020 e tratou da violação do direito à propriedade comunitária da terra de 132 comunidades indígenas, na Argentina. Essas comunidades sofreram progressivas invasões por populações não indígenas, que depredaram o meio ambiente para a prática da pecuária, poluíram as fontes de água potável, comprometendo sua alimentação, saúde, bem como sua identidade cultural. O Estado argentino foi condenado por não ter garantido segurança jurídica à propriedade comunitária, ao meio ambiente saudável e à identidade cultural. Mais além, em caráter inovador, a Corte também identificou a violação aos direitos humanos à alimentação e à água potável, considerados justiciáveis diretamente a partir do artigo 26 da Convenção Americana.
Para definir o conteúdo desses dois direitos sociais, a Corte Interamericana aplicou tanto as resoluções emitidas pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como também a Resolução 64 de 2010, da ONU sobre o direito à água, a Carta Social das Américas, e as Resoluções 2349/2007 e 2760/2012 da Assembleia Geral da OEA. O standard interamericano construído a partir dessas normas permite identificar como conteúdo do direito à alimentação “a disponibilidade de alimentos em quantidade e qualidade suficientes para suprir as necessidades alimentares de um indivíduo, sem elementos nocivos, e em conformidade com sua cultura” (parágrafos 218-219) . O direito à água potável, por sua vez, essencial tanto para a realização do próprio direito à alimentação como também o direito à saúde, implica a disponibilidade do bem (abastecimento contínuo para usos pessoais e domésticos); sua qualidade (água saudável) e acessível (para todos, sem discriminação) (parágrafo 227).
A partir desse conteúdo, a Corte Interamericana mais uma vez assumiu seu papel transformador a fim de extrair o máximo de efetividade das normas convencionais e constitucionais dos Estados (vale lembrar que o direito à alimentação é reconhecido expressamente no Brasil). A Corte buscou apontar caminhos para transpor as barreiras estruturais presentes na Argentina para tornar efetivos os direitos violados: para além de evitar medidas que pudessem turbar ou comprometer o acesso à alimentação e à água potável, determinou como obrigação estatal a garantia do mínimo essencial desses bens jurídicos aos grupos vulneráveis que não lograssem acessá-los por seus próprios meios (parágrafo 221 e 229). Essa obrigação rigorosa veio temperada com medidas de reparação integral e garantias de não repetição fixadas em sede de um litígio estratégico com abertura para o diálogo com as entidades estatais. Por fim, a Corte determinou ao Estado argentino que no prazo de seis meses apresentasse um plano com informações a respeito das populações vulneráveis com privação de acesso à água potável e à alimentação, bem como um plano de ação elaborado por especialistas e com a participação das comunidades indígenas para definição das medidas estatais adequadas (parágrafos 332, 333, 334).
Esses dados da sentença do caso Lhaka Honhat revelam uma relevante oportunidade para o Supremo Tribunal Federal participar da rede de juízes interamericanos e contribuir para a construção dialogada de um Ius Constitutionale Commune na América Latina (ICCAL) . Esse diálogo judicial poderá ser especialmente proveitoso no caso da ADPF 885 tanto pelo conteúdo da sentença do caso Lhaka Honhat quanto pelo procedimento adotado na definição das medidas de reparação.
Em termos de conteúdo, a sentença interamericana é um ponto de referência na delimitação das obrigações dos Estados para o respeito e garantia dos direitos sociais envolvidos, assim como na definição de seu conteúdo na perspectiva do constitucionalismo multinível. Mesmo que a ADPF brasileira não trate especificamente da afetação de povos indígenas, a questão central diz respeito à privação do essencial à sobrevivência em virtude da negligência e imperícia estatais. Como demonstrou a petição inicial, o Estado brasileiro tem abandonado políticas públicas essenciais para a satisfação desses direitos, revelando a necessidade de responsabilização. A fome e a privação da água potável no contexto econômico-social brasileiro são sofrimentos evitáveis.
Em termos procedimentais, a adoção do modelo de litígio estrutural também pode lançar luzes para a condução do caso pelo STF. Em se tratando da obrigação estatal de promover investimentos públicos e retomar políticas públicas, a construção das respostas pode passar por um diálogo entre os atores envolvidos (sociedade civil e agentes estatais) a fim de promover medidas mais legítimas e capazes de sanar o quadro de violação estrutural de direitos. Entretanto, há o risco manifestado pela conjuntura política atual de falta de cooperação por parte de agentes governamentais, como visto no caso da ADPF 709 sobre proteção de povos indígenas em face da COVID-19. Cabe ao STF medir as possibilidades à luz de uma atuação efetivamente transformadora que impulsione a máxima efetividade dos direitos humanos à alimentação e à água potável. A sentença interamericana no caso Lhaka Honhat convoca a todos os agentes estatais – inclusive ao STF – à concretização desses direitos.
Cita recomendada: Ana Carolina Lopes Olsen, “Lições do caso Lhaka Honhat vs. Argentina ao Brasil: um chamado ao diálogo interamericano na ADPF 885” IberICONnect, 13 de octubre de 2021. Disponible en: https://www.ibericonnect.blog/2021/10/licoes-do-caso-lhaka-honhat-vs-argentina-ao-brasil-um-chamado-ao-dialogo-interamericano-na-adpf-885/