O número de democracias eleitorais cresceu de 35, nos anos 70 à 110 em 2014 (Fukuyama, 2015), seguindo até este momento a previsão de Fukuyama sobre o Fim da História, no qual o autor afirma que o período da história do pós-guerra termina com a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final e ideal de governo no Mundo. Entretanto, o próprio Fukuyama analisa o processo de recessão democrática que se inicia em 2006, mas que apenas ganha força a partir de 2014. Por outro lado, órgãos de análise dos índices de democracia no Mundo têm alertado para as quedas dos regimes democráticos. O Freedom’s House alerta que em todas as regiões do Mundo a democracia está sob ataque de líderes populistas, com queda nos índices de liberdade de imprensa, liberdade religiosa, independência do Judiciário, liberdade acadêmica e outros direitos de liberdade.
Pelo Democracy Report do V-DEM Institute, o Brasil está entre os 10 países que mais se autocratizaram no Mundo, passando a ser considerado uma democracia meramente eleitoral e com uma deterioração acelerada de direitos e liberdades, estando atrás apenas da Turquia, Hungria e Polônia. Para além disso o V-DEM ressalta que a autocratização normalmente segue um mesmo padrão, atacando num primeiro momento a mídia e a sociedade civil e se utilizando da desinformação para polarizar a sociedade e atacar os opositores políticos, aliado ao ataque às instituições.
Na semana passada, o IDEA publicou o relatório sobre Democracia nas Américas em que ressalta que apesar dos países no continente terem abraçado a 3ª onda de democracia e terem fortalecido suas instituições neste período, passam agora por um retrocesso democrático que vem se acelerando em pouco tempo. A polarização política, a fragmentação partidária, a crise de representatividade e o descontentamento dos cidadãos com as elites políticas, seriam causas deste processo de autocratização da região, para além de que os atores políticos de hoje seriam bem diferentes daqueles presentes no período da transição democrática.
Ainda, é de se preocupar que por este Relatório do IDEA, o Brasil é o país que enfrenta o maior retrocesso democrático do mundo, com o maior número de atributos que medem o nível de sua democracia em queda. Os ataques às bases da democracia liberal vêm sendo orquestrados pelo governo federal: i) ataques a professores e autonomia universitária; ii) ataques a cientistas e censura a órgãos de pesquisa; iii) ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e Ministros; iv) ataques à integridade do processo eleitoral; v) ataques a opositores políticos com o uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos do Presidente; vi) ataques à imprensa e a jornalistas; vii) presença de militares em cargos no governo federal; e viii) cooptação de órgãos de controle.
Um ponto que chamou a atenção no referido relatório diz respeito aos ataques aos organismos eleitorais que se tornaram mais frequentes na região, como uma prática adotada por líderes populistas da ultradireita, estratégia já utilizada por Trump, que levou, inclusive, à invasão do Capitólio nos Estados Unidos. Tática que é reproduzida no ambiente brasileiro, a partir da divulgação em massa de notícias falsas, com a finalidade da corrosão da credibilidade no processo eleitoral.
Estes tipos de ataques foram observados não apenas no Brasil, mas também em El Salvador, México e Perú e buscam justamente criar uma crise de legitimidade inexistente para desacreditar o processo eleitoral e as instituições de controle. Os processos de desinformação e ataque às eleições já vêm sendo objeto de estudo pela Universidade de British Columbia, que apontou que atores estrangeiros podem atacar alguns alicerces da democracia, tais como: i) oportunidades justas para a participação do cidadão; ii) deliberação pública livre; e iii) integridade eleitoral. Embora os ataques digitais não consigam impactar na integridade dos processos eleitorais, eles buscam colocar em dúvida sua legitimidade por meio de um processo violento e articulado de produção de fake News.
No caso do Brasil, é explícito o ataque promovido por Bolsonaro às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Ministros do STF e TSE, especialmente ao atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso e ao Ministro Alexandre de Morais, que exercerá a presidência do Tribunal no período das eleições presidenciais de 2022. Bolsonaro alega que houve fraude às urnas eletrônicas nas eleições de 2018 e que acontecerá novamente em 2022. Entretanto, é de se destacar que as urnas eletrônicas foram estabelecidas no Brasil em 1996 e que desde então, ao contrário do alegado pelo Presidente, justamente evitou fraudes existentes no processo eleitoral brasileiro.
A gravidade do tema impõe acender um alerta vermelho na medida em que um dos princípios essenciais para a estabilidade democrática é, justamente, o princípio da legitimidade das eleições, entretanto, resultados de pesquisas apontam que na América Latina a credibilidade no processo eleitoral e nos organismos eleitorais caiu de 63% da população em 2004 para 45% em 2019. O que serve para colocar o perigo populista dos ataques em um radar máximo de atenção que sirva para assegurar o funcionamento das eleições periódicas e a estabilidade democrática.
Conforme alerta Scheppele, nenhuma autocracia se instala sem o apoio de grande parte da população. E os líderes populistas se utilizam da crise de credibilidade nas instituições e na má prestação de serviços públicos básicos para avançar sua agenda autoritária.
É preciso pensar nas causas da desconfiança nas instituições e na própria democracia. O latinobarômetro aponta que a satisfação com a democracia na América Latina cai de 45% em 2009 para 25% em 2020. Embora este mal-estar possa ser muito mais com os governos do que com a democracia em si, Fukuyama também aponta que a ausência de políticas públicas e ineficiência dos Estados para promover direitos sociais básicos de saúde e de educação seria uma das causas de crise da democracia.
Juan Linz (1999, p. 203) também já apontava, em relação ao Brasil, que “a distribuição de renda mais desigual, e os piores níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e sul-americanos” dificultou a tarefa de consolidação da democracia e, em 1992, o apoio à democracia por brasileiros era muito mais baixo do que o apoio de uruguaios, portugueses, espanhóis ou gregos no mesmo período.
Para além disso é certo que esta conjuntura também facilita os processos recentes de erosão democrática que se diferenciam de golpes abertos à democracia e rupturas constitucionais. A erosão atua justamente por dentro das instituições, cooptando-as para que não possam exercer seu trabalho com a autonomia necessária para a regulação e controle do poder político. Quando um governante autoritário busca não só atacar os outros poderes, mas também fragilizar os órgãos que possuem autonomia para impedir sua atuação inconstitucional e até criminosa, observa-se também a fragilização democrática, como no caso brasileiro.
O Brasil se insere, deste modo, no contexto dos países em retrocesso democrático por meio de um conjunto de ataques aos alicerces do constitucionalismo liberal, num processo que se utiliza da desinformação e baixo apoio da população à democracia. Por outro lado, Bolsonaro segue as táticas adotadas por outros líderes populistas com ataques à imprensa, às Cortes e ao processo eleitoral, com discurso neoconservador e antagônico à proteção de direitos humanos.
É necessário neste momento que Cortes e Observadores internacionais se aliem à comunidade acadêmica na defesa da democracia e da legitimidade institucional. O caso brasileiro terá impacto não só para a América Latina, mas pode ser um case de sucesso do avanço autoritário ou de sucesso da estabilidade institucional democrática.
É urgente compreender, deste modo, o contexto político mais amplo em que se inserem as táticas de ataques à democracia e de organização da ultradireita mundial e trabalhar os diferentes níveis – internacional, regional e nacional – de proteção da democracia e dos direitos humanos de modo global. Não haverá contenção apenas individual para a onda autoritária que se avizinha e que pode ser duradoura.
Cita recomendada: Estefânia Maria de Queiroz Barboza, “Democracia em risco: o caso brasileiro”, IberICONnect, 3 de diciembre de 2021. Disponible en: https://www.ibericonnect.blog/2021/12/democracia-em-risco-o-caso-brasileiro/
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