A segunda parte desta coluna segue com o escopo de apresentar brevemente o tema e usar a jurisprudência do STF brasileiro para mostrar a interação e as influências recíprocas entre as ordens jurídicas nacionais e o direito internacional, relevantes para o reconhecimento de um amplo e autônomo direito à ciência. A ideia é que esta tentativa possa inspirar o mesmo exercício em outras jurisdições e, principalmente, contribuir para a definição concreta de obrigações estatais positivas em face do direito à ciência. Nesta coluna não são apresentadas as possíveis definições, deduzidas no estudo mais aprofundado, sobre as obrigações positivas para o Poder Público em face de direitos fundamentais específicos que se unem ao direito à ciência (como a saúde e a educação), apresentam-se, sucintamente, apenas obrigações relativas ao direito à ciência.
Por certo, o reconhecimento explícito de um autônomo direito à ciência na jurisprudência da mais alta corte brasileira em muito acrescentaria, pois conferiria uma ancora subjetiva inequívoca para este conteúdo jusfundamental, fortalecendo a sua justiciabilidade. Um tal reconhecimento também facilitaria a identificação de violações autônomas ao direito à ciência. Não obstante, o recurso frequente e claro feito pelo STF à ciência como elemento constitucionalizado permite a afirmação de um inegável conteúdo normativo subjetivo de caráter jusfundamental que garante acessar e usufruir do progresso científico e de suas aplicações, para além da proteção à liberdade científica. Nesse conteúdo, incluem-se bens materiais e imateriais. Não se deve subestimar essa afirmação, pois a análise da jurisprudência do STF pavimenta o caminho para embasar obrigações estatais positivas e negativas como as seguintes:
– o Estado tem o dever de promover e fomentar a pesquisa científica e o desenvolvimento científico por meio de políticas públicas estruturadas e implementadas democraticamente, da destinação de recursos públicos e incentivos, da criação e manutenção de cenário institucional adequado (universidades, institutos de pesquisa, museus, agências estatais com competências de fomento e regulação);
– o Estado tem o dever de promover, respeitar e proteger o igual acesso e benefício ao progresso científico e suas aplicações – ao nível legal e concreto;
– o Estado tem o dever de promover, respeitar e proteger a igual participação no desenvolvimento, conservação e difusão da ciência, da pesquisa e conhecimento científico e tecnológico;
– o Estado tem o dever de estruturar e implementar suas políticas públicas observando as evidências científicas disponíveis e prevalentes, respeitando o dever de precaução e assegurando transparência aos fundamentos científicos utilizados nas decisões públicas;
– o Estado tem o dever de promover, respeitar e proteger – por meio de seus três Poderes – a efetividade dos direitos fundamentais e outros bens garantidos constitucionalmente de acordo com as evidências científicas disponíveis e prevalentes;
– o Estado tem o dever de estruturar e prestar os serviços públicos de acordo com o desenvolvimento científico e tecnológico objetivando acesso igual e universal;
– o Estado tem o dever de garantir proteção legal e concreta contra má conduta científica, mau uso da ciência e aplicações ilegais da ciência;
– o Estado tem o dever de fornecer proteção legal e concreta aos cientistas relativamente ao produto de seu trabalho, garantindo, simultaneamente, igual acesso e benefício das aplicações do progresso científico e tecnológico;
– o Estado está proibido de dificultar a pesquisa científica e o progresso baseado em razões inconstitucionais; tem o dever de respeitar e proteger a liberdade científica);
– o Estado está proibido de agir em negação ou claramente contra as evidencias científicas prevalentes disponíveis; tem o dever de usar sua discricionariedade dentre de parâmetros cientificamente aceitáveis;
– o Estado tem o dever de garantir o acesso a efetivos remédios legais em caso de violação do direito à ciência.
O objetivo desta enumeração não é ser exaustiva, mas extrair fundamentação concreta das decisões judiciais do STF para o conteúdo normativo autônomo do direito à ciência. Por um lado, a jurisprudência do STF oferece base jurídica clara para as obrigações apontadas. Por outro lado, a argumentação judicial pode beneficiar-se de contribuições acadêmicas. Nesse caminho, é desejável que os tribunais comecem a se dedicar ao reconhecimento e desenvolvimento do direito à ciência, buscando bases normativas em cada ordenamento jurídico, nomeando o direito explicitamente, e clarificando as obrigações estatais conexas, reforçando a dimensão subjetiva, a justiciabilidade e, consequentemente, a efetividade deste direito.
A contextualização da indicação destas obrigações estatais em uma moldura mais abrangente, leva a concluir que sua implementação deve focar-se simultaneamente em conservar, desenvolver e difundir a ciência e o conhecimento científico. A implementação destas obrigações, por certo, deve dar-se segundo os princípios gerais de realização progressiva, de não retrocesso e de igualdade, como firmados em instrumentos internacionais e nacionais, sempre tendo como norte a proteção à dignidade da pessoa humana.
Neste ponto, também é relevante registrar que o direito à ciência certamente caminhará de mãos dadas com outros direitos, mormente direitos sociais, como o direito a saúde e à educação. Esta circunstância, tão comum nos direitos fundamentais ou humanos, não desvaloriza a necessidade do reconhecimento de um direito autônomo à ciência. E, frise-se, esse direito não se enquadra na ideia de proliferação artificial de direitos humanos ou fundamentais.
O reconhecimento de um autônomo direito a usufruir dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações envolve uma multitude de novas possibilidades. Usufruir das aplicações do progresso científico é condição para o acesso à informação e às tecnologias de comunicação, essenciais para a participação informada no processo democrático e para o acesso a serviços públicos. O direito à ciência também pode se mostrar necessário para lidar com demandas de transparência e igualdade trazidas pelo crescente uso de inteligência artificial, digitalização e algoritmos. Por outro prisma, questões controversas relativas a fronteiras éticas da pesquisa científica também podem se beneficiar do estudo e das contribuições acadêmicas baseadas em um direito fundamental à ciência. Junte-se a isso o fato de ser inadiável uma substancial elaboração sobre o meio-ambiente e a biodiversidade para enfrentar questões mundiais relativas às tecnologias verdes, à transição energética, à mudança climática, ao desenvolvimento sustentável, às fronteiras de nosso planeta. Todas essas questões mostram, ainda, que o estudo e reconhecimento do direito à ciência tem que transcender fronteiras nacionais, merecendo enfrentamento na esfera internacional. A pandemia de COVID-19 tornou essa afirmação inegável.
O direito à ciência se configura, ao mesmo tempo, como uma ferramenta decisiva para a promoção de outros direitos fundamentais e bens e valores constitucionais (e transnacionais) e um necessário direito autônomo. Além disso, esse direito é decisivo no enfrentamento do desenvolvimento em uma vertente sustentável. A ciência e o direito à ciência não são capazes de oferecer respostas definitivas para as complexas questões ambientais e societais de nossa era. Ainda assim, são cruciais para o enfrentamento desses desafios e para contribuir na construção de caminhos inovadores num cenário racional, democrático e baseado nos direitos e na dignidade humana.