Durante as eleições de 2022, um outro ator se destacou no Brasil, além dos candidatos e dos partidos políticos: o Tribunal Superior Eleitoral. Parte desse destaque se deveu ao comportamento do presidente da República e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro. Seguindo a cartilha de outros populistas autoritários, Bolsonaro fez ataques constantes à justiça eleitoral durante todo seu governo, denunciando supostas fraudes no sistema de votação eletrônica e acusando de parcialidade vários membros do Tribunal Superior Eleitoral. Como não dispunha de provas dessas alegações, Bolsonaro buscava, na verdade, alimentar sua fábrica de fake news para deslegitimar o processo eleitoral. Essa estratégia teve um êxito parcial, pois seus apoiadores montaram acampamentos em frente a quartéis do Exército para pedir que as Forças Armadas anulassem as eleições e, no dia 8 de janeiro de 2023, milhares deles invadiram as sedes do governo em Brasília.
Apesar dessas ações, a Justiça Eleitoral conduziu com segurança as eleições de 2022 e os eleitos foram devidamente empossados. Respondendo aos ataques que sofria, o Tribunal Superior Eleitoral criou mecanismos de combate à difusão de fake news, obrigou a retirada de inúmeros conteúdos da internet, e reforçou os mecanismos de segurança do sistema de votação eletrônica, além de adotar outras medidas que contribuíram para que a Justiça Eleitoral continuasse exercendo suas funções com independência. Essa atuação chamou a atenção da imprensa internacional, que tendeu a apresentar o presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, como o principal responsável por garantir a integridade das eleições, embora ele também tenha sido criticado pela firmeza com que exerceu seus poderes.
Mas a história das eleições de 2022 no Brasil não pode ser contada como a batalha de um homem só. Para entender de que modo a Justiça Eleitoral conseguiu resistir às investidas do governo, é preciso analisar os recursos institucionais de que ela dispunha para cumprir com o papel que lhe foi atribuído pela Constituição de 1988.
Em funcionamento desde 1932, a Justiça Eleitoral é organizada em três instâncias: Juízes e Juntas Eleitorais, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunal Superior Eleitoral. Seus membros são magistrados de carreira do poder judiciário federal e do poder judiciário dos Estados, que exercem as funções eleitorais por tempo determinado. Além disso, os Tribunais Regionais Eleitorais e o Tribunal Superior Eleitoral são compostos por membros da advocacia, também com mandato fixo. Como órgão do Poder Judiciário, a Justiça Eleitoral goza de autonomia normativa, administrativa e financeira, garantida pelo art. 96 da Constituição brasileira.
Essa estrutura atua nos três níveis da governança eleitoral identificados por Mozaffar e Schedler: organização das eleições (rule application), resolução de litígios (rule adjudication) e definição das regras eleitorais (rule making). No que se refere à organização das eleições, cabe à Justiça Eleitoral no Brasil o registro dos eleitores, dos candidatos e dos partidos; a organização da votação e da contagem dos votos; e a fiscalização das eleições, incluindo a supervisão da propaganda eleitoral e dos gastos de campanha. No campo da resolução de litígios, a Justiça Eleitoral certifica os resultados das eleições e resolve as disputas pré-eleitorais, eleitorais e pós-eleitorais. Além disso, a Justiça Eleitoral também colabora na definição das regras eleitorais, especialmente por meio do instrumento da consulta, em que autoridades e partidos políticos solicitam ao Tribunal Superior Eleitoral a interpretação em abstrato dessas regras.
Assim, o modelo de governança eleitoral adotado no Brasil centraliza em único órgão, de caráter judicial e especializado, as principais funções relativas à administração das eleições. De modo condizente com esse papel, o Tribunal Superior Eleitoral e os Tribunais Regionais Eleitorais dispõem de um considerável montante de recursos materiais e humanos para exercer suas funções. Em 2022, a justiça eleitoral contava com 17.021 funcionários e seu orçamento ultrapassou o valor de 10 bilhões de reais, o equivalente a 2 bilhões de dólares.
Além desses recursos, a independência da Justiça Eleitoral também é garantida pela forma de composição do Tribunal Superior Eleitoral e sua articulação institucional com o Supremo Tribunal Federal. O Tribunal Superior Eleitoral é formado por sete membros, com mandato de dois anos prorrogáveis por mais dois. Três de seus membros são ministros do Supremo Tribunal Federal, dois são ministros do Superior Tribunal de Justiça – todos eles escolhidos por seus pares – e dois são advogados nomeados pelo presidente da República com base em listas elaboradas pelo Supremo Tribunal Federal. Portanto, a Suprema Corte é responsável, direta ou indiretamente, pela escolha da maioria dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral.
Ademais, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral são irrecorríveis, salvo quando contrariarem a Constituição ou quando negarem habeas corpus e mandados de segurança (art. 121, § 3º da Constituição brasileira). Nesses casos, os únicos recursos admitidos são dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, que em raras ocasiões modifica as sentenças do Tribunal Superior Eleitoral, o que demonstra que a interseção na forma de composição dos dois tribunais contribui para a estabilidade das decisões da Justiça Eleitoral. Vale ressaltar, ainda, que a presidência e a vice-presidência do Tribunal Superior Eleitoral são obrigatoriamente exercidas por membros do Supremo Tribunal Federal.
A articulação institucional entre Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal demonstra que esse último tribunal atua como um ponto de veto em relação às tentativas de modificar as decisões da Justiça Eleitoral, diminuindo as chances de êxito dessas ações. Nesse caso, podemos observar a operação de um ponto de veto auto-referente, uma vez que parte dos membros do Tribunal Superior Eleitoral é responsável pela revisão de suas próprias decisões. Essa articulação institucional também faz com que iniciativas do Poder Legislativo e do Poder Executivo que visem restringir o livre exercício das competências do Tribunal Superior Eleitoral afetem ao mesmo tempo membros do Supremo Tribunal Federal, a quem cabe decidir sobre a constitucionalidade das leis e das emendas à Constituição. Assim, o desenho constitucional brasileiro cria incentivos para que o Supremo Tribunal Federal proteja a independência da Justiça Eleitoral.
As competências constitucionais atribuídas ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal contribuem ainda para reforçar seus papeis na definição de regras eleitorais. Mudanças relevantes na legislação eleitoral brasileira nas duas últimas décadas foram adotadas a partir de decisões tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral que foram mantidas pelo Supremo Tribunal Federal, ou decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que foram implementadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Dentre os exemplos mais significativos encontram-se a perda do mandato dos parlamentares eleitos pelo sistema proporcional (deputados federais, deputados estaduais e vereadores), em caso de desfiliação sem justa causa do partido pelo qual se elegeram; a proibição de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas, inclusive empresas; a definição de regras para a distribuição de recursos do fundo partidário; e o estabelecimento de um nível mínimo de financiamento para as campanhas eleitorais de mulheres e negros. Em todos esses casos, novas regras eleitorais foram criadas com base em interpretações de princípios constitucionais, quanto aos quais cabe ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra, o que limita a possibilidade de reversão desses tipos de inovações pelo Congresso Nacional.
O teste da robustez da independência da Justiça Eleitoral ocorreu nas eleições de 2022. Tendo sob seu controle todos os passos do ciclo eleitoral, inclusive em relação à campanha eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral dispunha dos recursos institucionais necessários para preservar a integridade das eleições. Um dos melhores exemplos dessa atuação envolveu o combate às fake news. Já em 2021, por meio da Resolução nº 23.671, o Tribunal Superior Eleitoral declarou sua competência para determinar a retirada da propaganda eleitoral de conteúdos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados. Posteriormente, por meio da Resolução nº 23.714, de outubro de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral ampliou seus poderes para combater atividades de desinformação que atingissem a integridade eleitoral.
Nesse momento, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, a difusão de fake news atingia patamares inéditos no país, e o tribunal entendeu que era necessário adotar novas medidas para contê-las. Segundo a Resolução nº 23.714, toda decisão de exclusão de conteúdo atentatório à integridade eleitoral poderia ser estendida de ofício, pela presidência do Tribunal Superior Eleitoral, para «outras situações com idênticos conteúdos», sem a necessidade de uma nova representação judicial. Além disso, o prazo máximo para remoção dos conteúdos pelas redes e provedores foi reduzido de vinte e quatro horas para duas horas, e o descumprimento dessas determinações poderia levar à suspensão do acesso à plataforma implicada. Apesar dos questionamentos sobre a abrangência dos poderes que essa resolução conferia ao Tribunal Superior Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal rejeitou as alegações de inconstitucionalidade e reafirmou a competência da Justiça Eleitoral para fiscalizar a propaganda eleitoral. Cabe observar que essa decisão foi tomada por 7 x 2 votos, e que os dois únicos votos contrários foram proferidos pelos ministros do STF nomeados por Bolsonaro.
Portanto, a atuação recente da Justiça Eleitoral em favor da integridade das eleições no Brasil tornou-se possível com base em uma trajetória institucional que a havia consolidado como órgão de governança eleitoral no Brasil, dotado de independência perante os demais poderes. A articulação institucional do Tribunal Superior Eleitoral com o Supremo Tribunal Federal também reforçou a autoridade das decisões da Justiça Eleitoral, inclusive nas situações nas quais ela atuou como rule maker. Assim, a ofensiva contra o sistema eleitoral brasileiro, capitaneada por Bolsonaro, teve que enfrentar a atuação coordenada de dois altos tribunais, a qual foi decisiva para impedir o avanço dos atores autoritários. Não cabe dúvida que a resistência da sociedade civil e a força da oposição democrática contribuíram para esse resultado, porém o desenho constitucional brasileiro se mostrou adequado para responder ao desafio.