Na coluna anterior sumarizei a utilização das futuras gerações (FG) no discurso e na litigância climática, pretendo agora dividir com nossos leitores questionamentos sobre tal utilização.

Alguns problemas que parecem exigir reflexão se se pretende conferir direitos fundamentais atuais às gerações futuras

O debate sobre as FG coloca alguns pontos incontornáveis, no meu sentir, para reflexão. O primeiro deles diz respeito à essencial distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais.

Por mais que se encontre na literatura uma utilização por vezes indiferenciada entre direitos humanos e direitos fundamentais ou direitos constitucionais, alguma literatura mais especializada aponta a necessária distinção entre estas categorias. Ainda assim, parece-me importante acentuar que não se trata apenas de afirmar que uns são reconhecidos por instrumentos de direito internacional e outros encontram-se plasmados nas constituições domésticas; as distinções vão além da fonte normativa que os consagra. Desde o reconhecimento, até à positivação e à sua justiciabilidade, tais direitos apresentam sensíveis distinções. Os direitos humanos plasmados em instrumentos internacionais podem ser invocados (preenchidas as condições do direito internacional) contra o Estado com um todo, sem distinção de entidades descentralizadas, sem distinção entre as obrigações cabíveis a cada poder estatal. Na positivação dos direitos humanos não se encontram processos constituintes como os que frequentemente ocorrem no cenário doméstico. Por certo, os direitos humanos positivados em documentos internacionais servem de inspiração para a constitucionalização de direitos nas ordens internas (e a recíproca também me parece verdadeira), assim como formam uma camada extra de proteção para os indivíduos, colocada acima da ordem jurídica doméstica.  Também não resta dúvida que os direitos humanos e fundamentais encontram uma base moral comum e objetivam a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Ainda assim, não se pode desconhecer a particular configuração e papel dos chamados direitos fundamentais ou, para não restar dúvidas, dos direitos constitucionais.

Os direitos fundamentais encontram-se positivados nas constituições que, via de regra, são o mais alto conjunto de normas de um Estado, regulando, inclusive, a recepção do direito internacional e sua relação com o direito interno. As constituições são entendidas como constituidoras, legitimadoras, organizadoras e limitadoras do poder estatal e, atualmente, nessas suas tarefas, valem-se dos direitos fundamentais não apenas como normas de proteção subjetiva dos indivíduos, mas como normas objetivas que influem, assim, sobre toda a ordem jurídica. Não é por acaso que nas constituições contemporâneas é típico encontrar os direitos fundamentais abrindo o texto constitucional e espraiando-se, a partir daí, para a organização do Estado, para a parametrização da atividade estatal, para a instituição de procedimentos e instituições necessárias à sua efetivação.

Mesmo com diversos tratados internacionais, mesmo que se verifique um fenômeno de convergência entre diversas ordens constitucionais, direitos plasmados em cada ordem constitucional desempenham este papel estruturador e parametrizador de cada Estado concreto, para o que a sua positivação na ordem doméstica ganha em legitimidade. Esse modelo contemporâneo de constitucionalização de direitos não é irrelevante e informa grande parte da teoria constitucional (ocidental) atual. Esta afirmação pode ser verificada quanto às teorias hermenêuticas ou de interpretação constitucional, que hoje não prescindem dos direitos. Também pode ser verificada nas discussões acerca da tripartição dos poderes; os direitos fundamentais (constitucionais) colocam distintos deveres e limitações para os 3 poderes estatais em cada ordem jurídica concreta.

Especificamente no que tange ao poder legislativo, os direitos fundamentais plasmados na constituição, como é sabido, por um lado impõem deveres de concretização legislativa, por outro erigem limites à liberdade de conformação do legislador democrático. Esta circunstância, ligada à superioridade jurídica da constituição, levou a que se criassem mecanismos de garantir tal superioridade, tendo sido estruturados, em vários quadrantes e com vários modelos, mecanismos de controle judicial da constitucionalidade das leis.

Nestas conformações domésticas, surgem inúmeras questões relevantes e que não se reproduzem, sem mais, na esfera do direito internacional. Por exemplo, a necessária relação entre direitos fundamentais e democracia mostra-se, ao mesmo tempo, íntima e controversa. Para além disso, para o que interessa a esta presente reflexão, pense-se na justiciabilidade (exigibilidade) dos direitos, inafastável na esfera nacional, ainda que possa diferenciar-se de acordo com o direito ou a prestação específica que se tenha em mira. Pense-se, ademais, no exercício dos direitos e no acesso à jurisdição em caso de violação; é preciso haver capacidade de postulação e a criação de regras de representação judicial.

Não pretendo aqui condensar a vasta literatura sobre direitos fundamentais, interpretação constitucional ou controle de constitucionalidade, nem as várias teorias sobre direitos, justiciabilidade e democracia. Entendo apenas necessário mencionar esses temas fulcrais no cenário interno e que não figuram, desta forma, no plano do direito internacional. De fato, essas discussões e as construções teóricas que as acompanham são inafastáveis no direito constitucional e no direito interno e apresentam concretas consequências jurídicas, quer teóricas, quer práticas ou técnicas. No plano interno, legislador, administrador e juiz têm que concretizar e aplicar concretamente os direitos fundamentais dos indivíduos.

Além disso, não é indiferente que os direitos fundamentais tenham se desenvolvido, teórica e praticamente, como categorias jurídicas inspiradas nos direitos subjetivos, trata-se de direitos positivados, juridicamente exigíveis, não apenas direitos morais. De forma geral, trata-se de uma construção jurídica que deve contar, em princípio, com um titular do direito, um destinatário (em geral o Estado, com seus poderes), um conteúdo. Os direitos devem ser, ainda que em medidas variáveis, exigíveis, justiciáveis. Na sua efetivação, seja por meio da legislação que os concretiza, seja no caso específico da decisão de um conflito concreto, é muito frequente que os direitos colidam com outros direitos ou com interesses gerais, tendo que se resolver esse conflito normativo, em última instancia, não havendo outros critérios normativos, por meio da ponderação. Lembre-se que o desafio de resolver conflitos concretos ou verificar a constitucionalidade de leis, considerando a positivação constitucional de direitos fundamentais, recai, em regra, sobre o juiz.

Por certo, todas essas categorias e elementos devem evoluir. Verifica-se, assim, a construção dos direitos trans- e metaindividuais, dos direitos coletivos, dos direitos individuais homogêneos, bem como o avanço de variados instrumentos de litigância coletiva, como é o caso das ações populares, da litigância por meio de associações e fundações. Mesmo que haja significativas adaptações destes elementos, mantém-se a categoria jurídica direito como posição jurídica exigível que conta com um sujeito titular do direito, um sujeito obrigado pelo direito e um conteúdo deste direito. Esses elementos são relevantes para a operacionalização efetiva dos direitos em face dos poderes estatais, dos quais dependem os direitos, ao fim e ao cabo, para saírem do papel.

Neste cenário, não me parece consistente transportar, sem mais, para o campo do direito constitucional doméstico, um recurso a direitos das FG, de caráter retórico ou moral – em sentido não pejorativo –, feito nos palcos do direito internacional para reforçar a responsabilidade dos Estados e clamar por ação urgente. A teoria dos direitos fundamentais de que dispomos não oferece instrumentos para reconhecer e lidar com direitos fundamentais atuais para FG.

Uma primeira reação pode ser concluir que a teoria está obsoleta e necessita simplesmente se adequar. Acho que essa reação reclama reflexão mais detida, seja no plano teórico e normativo visando à pratica constitucional, seja também no plano político e mesmo filosófico. Em primeiro lugar, urge verificar a operacionalização teórica e prática do reconhecimento de direitos fundamentais atuais para FG. Em segundo lugar, penso que seja mais adequado reformular a pergunta visando a esclarecer se o reconhecimento de direitos fundamentais atuais para FG pode efetivamente oferecer resultados jurídicos consistentes e fortalecedores dos próprios direitos fundamentais. Será que tal reconhecimento é viável em termos teóricos e práticos? Será que a aplicação consistente de um tal reconhecimento gera situações viáveis de solução nos sistemas constitucionais? As respostas que de pronto me aparecem me levam a perguntar se não há outros meios jurídicos de proteger as FG, mais condizentes com os sistemas constitucionais. As próximas colunas devem tratar destes aspectos.

 

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