Neste ponto é preciso reiterar, para que não haja dúvidas, que, por óbvio, não sou contra as futuras gerações (FG), muito menos contra a fruição plena de seus futuros direitos. Mas, como assentado com base em Humphreys, precisamos levar tais gerações a sério sem, no entanto, deixar também de levar seus direitos a sério. Devemos nos perguntar, para tanto, pelo menos quem são as FG, se é viável conferir-lhes direitos fundamentais atuais e que de direitos fundamentais seriam titulares.
Futuras gerações como atuais titulares de direitos fundamentais?
Como explicitado, o discurso emancipatório ou utópico, prospectivo, aplicado nos fóruns internacionais não se adequa às possibilidades e necessidades da prática e da adjudicação constitucional, não se podendo, sem mais, reconhecer direitos fundamentais atuais a sujeitos inexistentes. De fato, no campo técnico-jurídico, parece-me que as dificuldades no reconhecimento de direitos fundamentais no presente para FG são incontornáveis. Como tratar de direitos atuais sem saber quem são seus titulares ainda inexistentes? É possível conceber juridicamente que existir não seja uma condição para ser um titular atual de direitos fundamentais?
Obviamente se poderia pensar que o direito já confere direitos atuais a sujeitos inexistentes quando, por exemplo, oferece tutela jurídica ao nascituro. Não consigo, no entanto, sinceramente, estender essa construção para as “gerações futuras”. Da mesma maneira não me parece plausível conceder direitos fundamentais atuais a FG valendo-se do argumento segundo o qual o direito cuida de direitos de sujeitos atuais considerando seu futuro incerto. Trata-se, como se percebe, de situações essencialmente distintas.
Além disso, a fluidez dessa categoria – futuras gerações – coloca, a meu ver, no plano jurídico, uma grande dificuldade para reconhecê-la, sem mais, atual titular de direitos. Quem são as FG?
Mas mais que isso, neste ponto tenho um problema que diria ser político e/ou moral. Sinceramente não consigo vislumbrar nada parecido, na prática, com as FG deste discurso dos direitos: uma categoria que disfruta homogeneamente da solidariedade intergeracional para poder existir e desfrutar de seus direitos. A única afirmação que realmente poderia ser sustentável sobre esta categoria seria que estamos falando de pessoas que ainda não nasceram. Mas mesmo a fronteira temporal entre as gerações presentes e futuras não se deixa determinar, apontando mais para um continuum entre gerações que para uma contraposição entre gerações presentes e futuras. Ademais disso, se os membros destas FG serão pobres, ricos, analfabetos, digitalmente conscientes, politicamente corretos, verdes, tolerantes religiosos, solidários, etc., simplesmente não podemos dizer. Mal podemos prever que tipo de exercício dos seus direitos eles irão querer e ser capazes de fazer. Que conteúdo eles vão escolher para preencher a sua concepção de uma vida digna permanece desconhecido.
Parece absolutamente claro que não existe um grupo homogêneo e coeso que possamos rotular como “futuras gerações”. Da mesma forma que não existe uma geração presente homogeneamente dotada de possibilidades reais de exercício de direitos, nem de necessidades ou interesses convergentes, nem mesmo coeso em relação a eventuais deveres ou responsabilidades perante tais “futuras gerações”. Essa circunstância não pode ser desconhecida no discurso nem na prática jurídica. Além disso, a utilização das “gerações futuras” no discurso político ou jurídico não deve levar a que se desconsiderem as graves clivagens e desigualdades sociais e econômicas, nem à necessidade de garantir, para as gerações atuais, formadas por sujeitos concretos, a proteção e a promoção dos direitos fundamentais na sua universalidade e indivisibilidade.
A diversidade “dentro das FG” poderia não ser tida como relevante para dificultar a titularização de direitos, que se configuram, cada vez mais, como direitos coletivos. Todos devemos ter, por exemplo, o direito a um meio-ambiente saudável ou ao desenvolvimento sustentável, tal como reconhecidos no direito internacional. Mais uma vez a tradução destes direitos para a prática constitucional não é simples. Ainda assim, deve ser feita. Me parece, não obstante, que a diversidade dentro desta eventual categoria titular de direitos se mostra tanto mais problemática quanto mais se pensa que se trata de sujeitos inexistentes, que não podem exercer tais direitos por si mesmos nem têm as suas condições existenciais concretas e essencialmente diversas conhecidas de antemão.
Pensemos, por exemplo, na necessidade de criar e justificar restrições à liberdade ou a outros direitos de sujeitos atuais, que inclusive estejam clamando por efetivação, em prol de medidas de sustentabilidade. Fundamentos para justificar restrições de direitos são essenciais em qualquer jurisdição constitucional, como já exaustivamente conhecido. Poderíamos pensar, para esboçar um cenário bem concreto, em restrições para voar. Para serem coerentes, estas devem ser colocadas num contexto mais amplo: quanto da população realmente voa, quanto das “futuras gerações” terão acesso (econômico) ao transporte aéreo? Quão grave seria tal restrição para as gerações presentes e futuras (na teoria constitucional: que peso estas liberdades deveriam ter num processo de ponderação)? Para continuar testando este discurso, pergunta-se: como se espalha o consumo de carne entre a população (seja nacional, seja mundial)? E para dar um passo adiante, pergunta-se: até que ponto as crianças ainda não nascidas, por exemplo, no Brasil, podem ser agrupadas em uma categoria jurídica no que tange ao acesso, ao exercício e às violações de direitos (na esfera internacional a diluição desta categoria seria ainda maior – que coesão quanto a acesso, exercício e violações de direitos podemos antever entre as crianças a nascer na Dinamarca e na Guiné)? Além disso, parece razoável perguntar se as gerações atuais deveriam ou poderiam ser igualmente responsáveis coletivamente perante as FG.
A ideia não é fazer um manifesto político ou defender que os atuais problemas de desigualdade nos devem impedir de enfrentar as alterações climáticas, a ideia é evitar um uso alienante das “futuras gerações” e também sublinhar as responsabilidades, capacidades e consequências desiguais das alterações climáticas sobre os Estados, as comunidades, as classes sociais, os indivíduos, etc. Em termos teóricos, isto traduz-se na necessidade de avançar considerações sobre os interesses e necessidades a levar em conta no design legislativo e os pesos dos direitos possivelmente envolvidos num processo de ponderação. É necessário ser claro sobre estes aspectos se quisermos lidar com os direitos na adjudicação constitucional de uma forma racional e proporcional.
Mesmo os mais bem-intencionados acadêmicos (e ativistas) precisamos perceber que as desigualdades estruturais do capitalismo não podem ser deixadas de lado como se não fossem permear o futuro e como se não fossem determinantes deste mesmo debate. Bem sei que os direitos fundamentais tampouco são capazes de alterar estrutural e radicalmente estas desigualdades. Mesmo assim, entendo que é preciso levá-los a sério como pilares essenciais dos Estado Democrático de Direito.
Este é um aspecto da questão: quando falamos de direitos legais (fundamentais, constitucionais, justiciáveis nas jurisdições domésticas) para as FG, deveríamos assumir seriamente e reconhecer que haverá uma infinidade de indivíduos que comporão estas gerações, com possibilidades econômicas e sociais imensamente diferentes, que determinam essencialmente o seu acesso aos direitos, além de todas as possíveis circunstâncias e preferências individuais, que também podem cunhar o exercício de direitos e a participação democrática. Na minha opinião, esta não é apenas uma questão política ou econômica, este aspecto molda as possibilidades de abordar legalmente os problemas que dizem respeito à concessão de direitos atuais às FG, bem como representá-las politicamente na legislatura e no executivo e legalmente nos tribunais.
E nem se diga que, se as desigualdades existentes nas gerações atuais não podem servir como argumento contra o reconhecimento de direitos fundamentais, igualmente não podem servir como empecilho relativamente às FG. A distinção entre sujeitos de direitos existentes e inexistentes continua, no meu sentir, intransponível. Some-se a isso que tal argumento mostra, ao revés, a necessidade de levar as desigualdades atuais e os direitos a sério, garantindo-lhes um mínimo de exigibilidade e não usando tais circunstâncias exatamente para reconhecer (mais) direitos no discurso desconhecendo seu duvidoso potencial de concretização.
A identificação jurídica dos titulares dos direitos e a sua relação com as circunstâncias reais é essencial para operar com os direitos fundamentais na prática. Na decisão constitucional, estas circunstâncias devem ser tidas em conta juntamente com os elementos normativos, a fim de decidir casos que envolvam vários titulares de direitos, vários direitos, a constitucionalidade da legislação, etc. “ Futuras gerações” é uma categoria demasiado vaga para ser legalmente identificada como atual titular de direito fundamental.
A dificuldade em configurar as FG como titulares atuais de direitos fundamentais me parece ainda mais clara se nos debruçarmos sobre o problema acerca de quais direitos seriam titularizados? Vamos refletir sobre este aspecto na coluna que se segue.
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