Anteriormente, tentei expor para reflexão as dificuldades de se conferirem direitos fundamentais atuais a futuras gerações (FG). Nesta coluna final de 5 colunas sucessivas, não apresento uma solução para o problema, levanto apenas algumas perguntas para que possamos continuar esse necessário debate.
Alternativas jurídicas para a tutela do planeta com olhos voltados para o presente e para o futuro
As considerações que expus para nossos leitores acerca da titularização de direitos fundamentais atuais por FG partiu da compreensão destes direitos como verdadeiras normas jurídicas positivadas em constituições domésticas, com conteúdo, titulares e obrigados pelos direitos, contendo (pelo menos um certo grau de) justiciabilidade (exigibilidade), impondo-se aos 3 poderes estatais na exigência de respeito, proteção e promoção. Essa perspectiva constitucional parece-me imprescindível, mormente se tivermos em mente quadrantes em que a constituição e a jurisdição constitucional erigem-se como o locus de proteção dos direitos, valendo as normas constitucionais – e não os instrumentos internacionais – como fundamento dos direitos e como parâmetro superior de controle das atuações estatais. Essa necessidade se mostra ainda mais presente diante de contextos em que os sistemas de proteção regional ou internacional não encontram a mesma penetração que, por exemplo, no contexto europeu. Me parece, ademais, que esta perspectiva, ligada concretamente à ordem constitucional e à prática constitucional, para além de carregar legitimidade diversa da encontrada na esfera global, deva ser levada a sério pelo direito internacional, mesmo que como tradução local e diversa dos fins almejados pelo direito internacional dos direitos humanos.
Pois bem, nesta perspectiva constitucional, as FG, sujeitos inexistentes no presente, não são titulares atuais de direitos fundamentais. Não obstante, o direito tem instrumentos normativos para tutelar uma base material para a existência futura. Como esboçado anteriormente, o sistema jurídico já prevê para o futuro, já tem instrumentos para tanto. Urge, sempre, levar tais instrumentos a sério e mesmo desenvolver outros que se ocupem de ter em conta os interesses das FG – com base no dado epistêmico mais que provável que existirão – na elaboração e implementação de políticas públicas de longo prazo. Entendo que estes são instrumentos jurídicos mais apropriados para enfrentar os desafios climáticos sem impor riscos de pauperização ou captura das construções constitucionais que devem proteger os direitos fundamentais e sem impor riscos para os próprios direitos das FG, mormente dos indivíduos em situação de vulnerabilidade.
A situação climática é muito complexa, mas não será resolvida por meio de subterfúgios discursivos alentadores.
Como salientei anteriormente, há diversas ordens constitucionais que prevêem textualmente a proteção voltada para as FG. Não é necessário conceder-lhes direitos atuais para que haja obrigação constitucional para a legislatura, a administração e o judiciário de levarem em conta a proteção do meio-ambiente voltada à sua conservação no interesse das FG (claro também das atuais).
No direito internacional, que pode aqui ser invocado sob diversos títulos, desenvolvem-se as ideias de justiça e equidade intergeracional e que, de certa forma, estão encontrando eco nas constituições domésticas. Talvez se deva aqui invocar também o direito ao desenvolvimento, como forma de buscar mais equidade hoje, reclamando também novas configurações das relações norte-sul. E por que não invocar também os próprios direitos sociais, imprescindíveis no enfrentamento das iniquidades intrageracionais.
É interessante notar que a questão da justiça ou equidade também se coloca em termos gerais por meio da contraposição entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento ou países pobres, como se vê na crítica de Lawrence a Humphreys. Talvez esse debate deva ser feito, não apenas na contraposição entre Global North e Global South, mas considerando também as clivagens sociais e econômicas existentes em todos os quadrantes do globo e ainda mais severas no Global South. E, mais que isso, talvez se deva cogitar mais concretamente das obrigações de colaboração entre países ricos e pobres no sentido de uma mais tangível implementação de políticas de equidade, não apenas intergeracional, mas também e com muita urgência, intrageracional.
Com estas bases jurídicas, pela perspectiva constitucional, parece-me mais coerente que conferir direitos fundamentais atuais a FG, pactuar juridicamente deveres atuais para sujeitos atuais e especialmente para o Estado, sujeito de direito obrigado pelos direitos fundamentais e criado para perdurar através da intertemporalidade. A base de tais deveres pode ser buscada em concepções morais antropocêntricas, voltadas à justiça em face das gerações humanas futuras, mas igualmente em concepções morais diversas, como o dever de preservar o planeta em respeito a este mesmo e sua biodiversidade. Esses deveres morais ou políticos devem ser traduzidos em direito para que sejam deveres jurídicos, por meio de processos democráticos (ainda que saibamos dos déficits democráticos). Na verdade, como dito, já há diversos desses deveres positivados em constituições e legislações domésticas. É importante salientar que se podem conceber esses deveres sem que haja a necessidade de construir imediatos direitos correlatos.
Ainda pela perspectiva constitucional, parece-me consistente e mais adequado à moldura dos direitos fundamentais, que nos voltemos aos direitos das crianças para servir como elemento relevante na busca de soluções mais efetivas para o enfrentamento da crise climática. Por certo, a relação entre direitos das crianças e eventuais direitos ou interesses das “futuras gerações” engloba variadas complexidades e seu estudo em contraponto mostra, diante da atual moldura normativa, inclusive os perigos de se propalar direitos para as FG em detrimento dos direitos das crianças, especialmente direitos sociais, como escreve Aoife Nolan. As diversas dificuldades técnico-jurídicas relativas ao reconhecimento de direitos atuais para FG não se coloca, sem mais, quando se trata de direitos das crianças, que são sujeitos de direitos existentes. Ademais disso, os direitos das crianças levam a que, no meu sentir, não se possa, simplesmente, desconhecer as desigualdades e clivagens existentes. Ainda no que tange aos direitos das crianças, é possível encontrar bases jurídicas, tanto no direito doméstico, em regra, quanto no direito internacional, mais desenvolvidas e assentadas, baseadas em categorias menos fluidas que as “futuras gerações”. Esses dados não têm passado despercebidos na litigância climática.
Parece-me incontornável, seja no plano prático, seja no plano moral ou no normativo, que as políticas atuais sejam modeladas e implementadas considerando as urgentes demandas climáticas e ambientais de nosso planeta. Esta modelação e implementação devem incorporar a perspectiva de longo prazo. Isto se faz em prol das atuais e FG, do planeta, se assumirmos tais deveres morais como deveres normativos. Sendo assim, consideramos os direitos das FG, mas não no sentido de lhes conferir direitos fundamentais atuais.
Por fim, é preciso dizer que o papel assumido pelas crianças e jovens na judicialização dos direitos, mormente no plano internacional, pode continuar se valendo, para além dos direitos de indivíduos presentes, do recurso à necessidade de cuidar do planeta também para as FG. Uma vez que a partir de iniciativas de caráter ativista tem-se presenciado a judicialização destas questões com base nos direitos, parece-me necessário tecer um discurso responsável e tecnicamente adequado aos direitos fundamentais, e que se volte, igualmente, para as injustiças intrageracionais e para a necessária relação entre direitos e democracia, inclusive por meio da judicialização. Esse discurso deve ser afinado para as diversas searas jurídicas. O direito tem uma inegável dimensão utópica, propositiva, propulsora. Essa dimensão propulsionadora não é irrelevante, mas precisa ser contextualizada diante da também inegável limitação do direto para realizar drásticas alterações na realidade prática. Nesse sentido, parece-me preciso calibrar o discurso do direito internacional acerca das FG para caber também no direito constitucional de modo que este seja capaz de realizar, da forma mais efetiva possível, alguma alteração por meio da prática constitucional doméstica.
Neste ponto, gostaria de terminar deixando as perguntas postas e indagar sobre uma senda que possa eventualmente nos ajudar nos desenvolvimentos necessários. Oxalá as presentes e FG virão com respostas inovadoras a partir de paradigmas que vão além da dicotomia norte-sul, ocidente-oriente, e farão, senão uma revolução por meio do direito, reformas teóricas e normativas significativas para o enfrentamento da questão climática, inexoravelmente ligada ao sistema econômico mundial. Oxalá sejam reformas que pavimentem caminhos de implementação, ainda que longos e tortuosos. Assim tem sido com o direito ao desenvolvimento e com a própria litigância climática.
A senda que gostaria de deixar aberta nesta tentativa de diálogo refere-se à ideia, que já conta com vasta literatura, que aponta para a necessidade/possibilidade de se abandonarem abordagens para a questão climática exclusivamente antropocêntricas e centradas no modelo capitalista. Aqui, mais uma vez, não por meio de uma artificial proliferação de direitos, mas buscando novas construções jurídicas. Enfim, esta senda, que merece discussão para além do que é viável nestas já longas (cinco) colunas, me leva a reiterar que nem todas as questões societais ou climáticas podem ser resolvidas pelo prisma dos direitos. Se queremos, de fato, uma (r)evolução na nossa relação com o planeta e na efetivação de equidade, não me parece que reconhecer direitos fundamentais para as FG no presente seja capaz de operar essa alteração.