In memoriam de Alvin Y.H. Cheung

Estratégia do Legalismo Abusivo

Com bastante surpresa, recebemos a triste notícia acerca do recente passamento de Alvin Y.H. Cheung (1986-2024), jovem pesquisador e docente na área de direito público, com quem tivemos a grata oportunidade de dialogar no ano letivo 2017-2018 perante a New York University. Sua recordação reacendeu nosso interesse em sua inovadora pesquisa doutoral centrada no que denominou de “legalismo abusivo”.

A título de análise de caso, Prof. Cheung investigou os efeitos concretos dessa estratégia político-normativa em Hong Kong após a sua reintegração à soberania do Estado chinês, por intermédio do agregamento imposto das correspondentes instituições locais, acompanhado pela modificação estrutural das faculdades jurídicas até então fruídas pela população hong-konguesa, com efeitos degenerativos notórios no campo das liberdades públicas (Cheung 2021).  

Portanto, consiste o legalismo abusivo no uso do direito infraconstitucional (ordinário), apenas formalmente associado ao estado de direito (rule of law) na posição de estratégia dirigida a evitar possíveis escrutínios desfavoráveis, mas cuja prática visa a consolidar posições de tendência substancialmente autocrática (Cheung 2018).   

Ao revisitar nossas anotações sobre a instigante banca de qualificação de tese de Prof. Cheung (JSD Forum 2017), ressaltou-se uma pontuação crítica acerca do reconhecimento da prática sistemática de concessão de vantagens políticas a um determinado grupo, em comparação com outro minoritário ou de oposição, em regimes autoritários eleitorais eventualmente aderentes ao legalismo abusivo. 

Mesmo cientes de que regimes autoritários eleitorais são bem marcados por não ceder o controle do Estado, apesar da adoção de eleições regulares para o Legislativo e outros cargos políticos (Smyth, Bianco & Chan 2019), aparenta válido questionar se a perspectiva teórica do legalismo abusivo poderia contribuir para a melhor compreensão de alguns fenômenos verificáveis em regimes democráticos

Sob tal óptica, uma testagem atual interessante pode se situar no exame dos fatos que circundam os casos Marco Temporal I & II, submetidos ao Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF).  

Casos Marco Temporal I & II 

Após um longo processo decisório que perdurou por cerca de cinco anos, entre o reconhecimento da repercussão geral e a publicação da decisão final de mérito (2019-2024), a Corte Suprema brasileira fixou a tese geral sobre a inviabilidade de estabelecer o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da vigente Constituição, na posição de marco temporal definitivo para o reconhecimento das terras indígenas no Brasil. 

Em seu precedente vinculado ao julgamento do caso Marco Temporal I, o STF definiu que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição” (RE-1.017.365 2024). 

Referida decisão foi positivamente reconhecida por diversas instâncias internacionais de proteção, a exemplo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ONU 2023) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA 2023), na medida em que assimilou a interpretação jurídica mais apropriada para o asseguramento dos direitos das minorias indígenas. 

Entretanto, antes mesmo da publicação oficial do respectivo acórdão, o Parlamento Federal aprovou e promulgou a Lei nº 14.701 (2023), superando os vetos executivos aplicados, com vistas normatizar no sentido de que “a ausência da comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu enquadramento” de terras habitadas por indígenas em caráter permanente (art. 4º, § 2º), além de dispor que “a cessação da posse indígena ocorrida anteriormente a 5 de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada” (art. 4º, § 4º). 

Com isso, a novel legislação protagonizou um conflito direto e imediato com o precedente judicial constitucional expresso no Tema de Repercussão Geral nº 1.031/STF (Marco Temporal I), de modo a evidenciar a nítida sobreposição da maioria representada pela vontade parlamentar com relação à minoria indígena afetada, a qual havia sido substancialmente protegida pela anterior decisão da Corte Suprema brasileira. 

Diante desse cenário de contraposição normativa, foram ajuizadas diversas ações de controle abstrato de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADO-86, ADC-87, ADI’s-7582, 7583, 7586), cujas pretensões se voltaram para o debate em torno da eficácia e da própria validade jurídica da Lei nº 14.701/2023 – caso Marco Temporal II –.  

Reunidas tais ações sob sua relatoria unificada, o Min. Gilmar Mendes decidiu no sentido de ordenar a suspensão nacional de todos os processos judiciais em que se discutia a constitucionalidade da denominada Lei do Marco Temporal e, conjuntamente, submeter as citadas ações a “um modelo judicial aberto e dialógico de superação do conflito, por meio da governança judicial colaborativa”, com vistas à solução autocompositiva da própria questão constitucional (ADC-87 2024). 

Considerando as premissas lançadas em trabalho anterior (Resende & Vieira 2016), configuram-se oportunas algumas pontuações críticas relacionadas ao uso demasiadamente abrangente do método do controle dialógico de constitucionalidade. 

Limites para o Modelo Judicial Dialógico: Direitos Humanos de Minorias

A partir da perspectiva política, compreende-se que uma concepção absoluta de democracia pode se converter em verdadeira armadilha para as minorias, caso haja uma aplicação da regra de maioria sem os mecanismos constitucionais de proteção, especialmente sem a efetiva promoção do pluralismo e da pluralidade participativa (Ely 1980). 

Nesse sentido, merece destaque o papel contramajoritário a ser exercido pelo Poder Judiciário, com vistas a evitar o cenário de supressão de minorias (Bickel 1986), fundado na busca do reajuste estruturante das tensões políticas protagonizadas pela maioria. 

Em nenhuma hipótese, portanto, pode o Judiciário nacional servir de suporte ou confirmação de violações de direitos humanos de minorias que deveria proteger, por intermédio da implementação de suas funções constitucionais precípuas. 

Não se nega que a denominada revisão judicial dialógica (Dialogic Judicial Review) possui características que buscam uma mais ampla harmonização do ponto de vista do constitucionalismo democrático, ao capitalizar as vantagens institucionais das Cortes em conjugação com a devida atenção à vontade política emanada do competente foro legislativo (Tushnet 2008). Tais balizamentos, porém, devem se guiar por limitações diferenciadas quando se tratar de minorias.  

A esse respeito, a experiência canadense fornece alguns elementos importantes a partir da Carta de Direitos e Liberdades de 1982,  diploma de caráter constitucional que prevê em sua Seção 33 a Notwithstanding Clause (Cláusula “Não Obstante”), a qual autoriza que o Legislador Nacional ou Provincial mantenha efetiva a sua legislação por um interstício de até cinco anos, ainda que tal norma seja qualificada incompatível com as disposições da Carta pelas instâncias judiciárias. 

Apesar de suas virtudes abstratas em prol do equacionamento da dicotomia entre democracia e judicial review, insta registrar a existência de restrições normativas estruturantes à Seção 33 da Carta Canadense, dentre as quais se destaca a inadmissibilidade de sua aplicação com referência aos direitos dos povos originários (Kahana 2023). 

Em recente precedente (Dickson v. Vuntut Gwitchin First Nation 2024), a Suprema Corte do Canadá explicitou seu posicionamento no sentido de que os direitos e liberdades dos povos indígenas (Seção 25) se encontram protegidos contra a prevalência de quaisquer outros direitos e liberdades individuais previstos na Carta Canadense (1982) e que possam afetar a sua fruição, em total consonância com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, especialmente com o disposto no respectivo artigo 34 (2007).

Sob a inspiração de tais premissas, convém ressaltar os riscos da aplicação forçada do método do controle dialógico de constitucionalidade, nas hipóteses em que as minorias indígenas atingidas não possuírem condições reais de efetiva participação no sopesamento das forças políticas operantes. 

Não por outro motivo, em 28 de agosto do corrente, a maior entidade representativa das comunidades indígenas brasileiras, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), decidiu cessar a sua participação nos procedimentos conciliatórios vinculados ao caso Marco Temporal II no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Em sua justificativa, uma das lideranças indígenas registrou: “Não iremos nos submeter a mais uma violência do Estado brasileiro, sob a premissa de uma conciliação forçada” (JOTA 2024).

Conclusão: Precedentes em Roda de Fortuna

De volta à tese de Alvin Y.H. Cheung, configura-se viável identificar alguns elementos constitutivos do legalismo abusivo na conduta da maioria parlamentária nacional ao editar a recente Lei do Marco Temporal, e.g.

(i) uso estratégico do direito infraconstitucional: aprovação acelerada da Lei nº 14.701/2023, cujo projeto legislativo tramitou em regime de urgência, com vistas a iniciar a sua vigência normativa antes mesmo da publicação do acórdão da Suprema Corte (Marco Temporal I); 

(ii) associação apenas procedimental ao rule of law: superação formal dos vetos do Poder Executivo, os quais se encontravam fundados no conteúdo material do precedente constitucional do STF (Marco Temporal I); 

(iii) tendência substancialmente autocrática: busca pela supressão arbitrária dos direitos de minorias indígenas, com a debilitação infraestrutural das correspondentes oposições políticas.  

De forma subsequente, por intermédio da aplicação indistinta do método do controle dialógico de constitucionalidade ao caso Marco Temporal II, o Supremo Tribunal Federal brasileiro não se ateve às restrições básicas decorrentes do envolvimento direto e imediato de direitos humanos de minorias indígenas, com relação aos quais o modelo dialógico-constitucional canadense se evidencia mais protetivo para os povos originários, ao excluir referida categoria de direitos fundamentais da aplicação da Notwithstanding Clause (Seção 33). 

E o que virá a seguir? Mesmo que qualquer prognóstico se apresente pouco confiável, provavelmente em razão de uma crise mais ampla do próprio judicial review (Waldron 2024), aparenta que a Roda de Fortuna continuará a girar incessantemente para determinados precedentes constitucionais, ainda que esteja em jogo a urgente proteção de minorias. O Fortuna, velut luna statu variabilis… (Carmina Burana). 

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